O Naturalismo Metodológico e o ‘Cativeiro Ideológico’ do Naturalismo Filosófico

“O teórico que afirma que a ciência é tudo o que há – e o que não estiver nos livros de ciência não tem valor – é um ideólogo com uma doutrina própria, distorcida e peculiar. Para ele, a ciência não é mais um setor da iniciativa cognitiva, mas uma visão de mundo que inclui tudo. Essa não é uma doutrina da ciência, e sim, de cientificismo. Adotar essa instância não é celebrar a ciência, e sim, distorcê-la”. – Nicholas Rescher, in The Limits of Science



Por Enézio E. de Almeida Filho
Mestre em História da Ciência – PUC-SP
Presidente Emérito da SBDI

Ao longo da história da ciência há registros da busca incessante do ser humano para compreender o universo, a si mesmo e como dominar a natureza. Entre as muitas conquistas conseguidas pelo espírito humano está a sistematização desses conhecimentos.

Algumas dessas buscas são consideradas como antigas e não científicas como os povos antigos – sumérios, babilônios, chineses e indianos, os gregos com os seus filósofos Demócrito (460-370 a.C., o porta-voz do naturalismo), Epicuro (341-270 a.C.), e até um filósofo poeta romano como Lucrécio (99-55 a.C.), e outras tidas como modernas e científicas porque influenciadas pela visão de ciência revolucionária de Francis Bacon (1561-1626) no século XVII.

A padronização de como se obter conhecimento atende pelo nome de método científico. Embora não haja consenso do que seja o método científico, o formato básico deste método aceito irrestritamente é:

1. A observação do fenômeno e o registro dos fatos. Os fenômenos são todos os eventos que ocorrem na natureza; e os fatos são as descrições daquilo que é observado.
2. A formulação de leis físicas a partir da generalização dos fenômenos. As leis físicas são as maneiras como a natureza se comporta baseado naquilo que foi observado no passado.
3. O desenvolvimento de uma teoria que é usada para predizer novos fenômenos. A teoria é uma declaração geral que explica os fatos. Uma teoria pode levar a novas conclusões ou a descoberta de um fenômeno. Os desenvolvimentos de uma teoria freqüentemente resultam numa mudança de paradigma – isto é, considerar ou pensar sobre um problema científico de um modo totalmente novo. [1]

Todavia, nem todas essas características do método científico são aplicáveis em todas as áreas do conhecimento humano. Destacar aqui este aspecto demarcacionista neste trabalho seminal se faz mais do que necessário, pois cada ciência tem seus processos epistemológicos exclusivos delimitados estritamente pelo seu objeto de pesquisa.

O método científico é condição sine qua non para se atingir todo e qualquer conhecimento científico. Como construção humana de descrição da realidade, ele está sujeito também aos aspectos sócio-culturais da época. Haveria então a possibilidade deste método ser contaminado? Uma visão de mundo como o naturalismo poderia influenciá-lo na sua execução e defesa em detrimento de outras visões de mundo?

Sendo o método científico a ferramenta epistêmica utilizada em todos os saberes, aqui denominado de naturalismo metodológico, implicaria inexoravelmente na adoção da ideologia do naturalismo filosófico? Se não implicar, o que isso significa?

Estaria o naturalismo metodológico numa espécie de cativeiro ideológico do naturalismo filosófico? O que seria esse cativeiro ideológico? Seria uma distorção da ciência conforme Nicholas Rescher? [2]

I. O naturalismo – uma doutrina metafísica

O naturalismo, segundo o dicionário Aurélio, é a “doutrina segundo a qual todo o conjunto de fenômenos pode ser reduzido, por um encadeamento mecânico, a fatos do mundo concreto material sem a intervenção de nenhuma causa transcendente”. [3] A definição do Aurélio é ontológico-metodológica, mas o naturalismo também é uma Weltanschauung, uma cosmovisão particular que afirma o que é definitivamente real e irreal. A natureza seria definitivamente real.

A natureza consiste de partículas fundamentais que constituem a matéria e a energia. As leis naturais governam o comportamento de como essas partículas se comportam.

Assim, a natureza seria definitivamente tudo o que existe – um sistema permanentemente fechado de causas e efeitos de partículas, cordas, campos que não podem ser influenciados por qualquer coisa fora desse sistema. Essa doutrina metafísica dá prioridade à ciência natural como sendo o único modo de se descrever a realidade porque tudo o que é conhecido da natureza, que não seja por observação direta, é produzido pela investigação científica. O naturalismo como visão de mundo privilegia muito a ciência como a nossa única fonte de conhecimento mais confiável. Tudo o que conflitar com esse conhecimento é considerado como efetivamente falso e inexistente. [4]

O naturalismo se apresenta em pelo menos quatro características:
antiteológico, metodológico, antissobrenatural e pragmático. Somente as duas últimas são compatíveis com a teoria do Design Inteligente, e apenas a última é compatível com as tradições religiosas monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo). [5]

II. O naturalismo filosófico – Uma ‘ideologia’
materialista

As ciências naturais são disciplinas teórico-empíricas que têm muitas definições. Razão? Não existe consenso entre os cientistas sobre cada aspecto do método científico. O filósofo de ciência Del Ratzsch define como seria estes tipos de ciências naturais (química, física, biologia, geologia e outros ramos de ciências chamadas de ciências “exatas” ou “naturais”):

“Uma ciência natural é uma disciplina teórica explanatória que aborda objetivamente os fenômenos naturais dentro das limitações gerais de que (1) as suas teorias devem ser racionalmente conectáveis aos fenômenos empíricos geralmente especificáveis e que (2) normalmente não saí da esfera natural dos conceitos empregados na sua explicação”. [6]

O naturalismo metodológico [7] é o método epistemológico por excelência adotado pelos cientistas no fazer ciência normal na busca das respostas às questões “o quê” (quais são os fatos dentro de algum domínio de estudo) e “como” (os padrões regulares que são empiricamente detectáveis na natureza, e explicar seus mecanismos naturais) [8] encontradas na natureza, considerando-se o fato que “as ciências naturais devem se limitar a explicações naturalistas e evitar escrupulosamente atribuir qualquer significado científico à inteligência, à teleologia ou ao design real”. [9]

Del Ratzsch lista cinco razões principais porque desta ampla aceitação do naturalismo metodológico, embora discorde de que elas resistam a um exame crítico:

  1. A crença de que o naturalismo metodológico é exigido pela própria definição de ciência,
  2. A crença de que as teorias relativas ao sobrenatural não podem ter conteúdos empíricos estáveis e testáveis,
  3. A crença de que tais teorias têm sido completo fracassos científicos,
  4. A crença de que todas tais teorias são versões de teorias do “Deus das lacunas” e que tais teorias são cientificamente inaceitáveis, e
  5. A crença de que permitir o uso de teorias de design iria erodir a ciência ao estimular a preguiça científica. [10]

A forma mais predominante de naturalismo aceita consciente e inconscientemente é o naturalismo antiteleológico que não admite quaisquer princípios teleológicos fundamentais operando na natureza, a não ser as leis naturais inquebráveis caracterizadas pelo acaso e necessidade. [11]

Jacques Monod no seu livro famoso Chance and Necessity afirmou este princípio fundamental para a ciência:

“A pedra fundamental do método científico é o postulado que a natureza é objetiva. Em outras palavras, a negação sistemática que ‘verdadeiro’ conhecimento possa ser obtido interpretando-se os fenômenos em termos de causas finais – isto é dizer, de ‘propósito'”. [12]

Quando o cientista tenta descrever como que dois eletrodos carregados separam o gás oxigênio e o hidrogênio quando colocados na água, a “hipótese Deus” é simplesmente desnecessária e completamente inadequada. Por quê? Porque sendo o universo físico o objeto apropriado do estudo científico, o único método apropriado para esse estudo é o naturalismo metodológico. [13]

II. O naturalismo filosófico (metafísico): Uma ‘ideologia’ materialista

O naturalismo filosófico – ou naturalismo metafísico – é uma posição filosófica e ideologia materialistas já encontradas em autores gregos antigos como Demócrito (c. 460-370 a.C.), Epicuro (c. 341-270 a.C.), e o poeta romano Lucrécio (c. 95-52 a.C.): a natureza é tudo o que existe, não existe o sobrenatural. O naturalismo filosófico é a convicção de que a natureza é um sistema fechado de causas e efeitos que não pode ser afetado por qualquer fator externo. Uma doutrina de que o mundo natural é tudo o que existe. Deus, anjos, milagres não existem. [14] A esfera natural é a única realidade que existe e a ciência é o único acesso para as estruturas e princípios fundamentais que definem e governam aquela realidade. [15]

Ele é derivado de uma epistemologia – um modo de conhecer – chamado de naturalismo metodológico permeando não somente na ciência natural contemporânea, mas também em todas as ciências humanas e sociais. Por que o naturalismo filosófico atraí tanto aos cientistas? Porque dá à ciência um monopólio virtual na produção de conhecimento, assegurando aos cientistas de que, em princípio, não existem questões importantes que estejam além da investigação científica. Além disso, dificilmente o cientista diz que “não sabe”. Esse posicionamento seria “uma preferência profissional compreensível” ou “o modo objetivamente válido de se conhecer o mundo?” [16]

Exemplo dessa preferência pelo naturalismo filosófico – confundido como sendo a própria ciência é visto na declaração feita por Richard Lewontin:

“Nós tomamos o lado da ciência apesar do patente disparate de alguns de seus construtos, apesar de sua falha em cumprir muitas de suas promessas extravagantes de saúde e vida, apesar da tolerância da comunidade científica de estórias da carochinha não comprovadas, porque nós temos um compromisso anterior, um compromisso com o materialismo. Não que os métodos e as instituições de ciência de algum modo nos obriguem a aceitar uma explicação material do mundo fenomenal, mas, ao contrário, que nós somos forçados pela nossa fidelidade a priori a causas materiais para criar um aparato de investigação e uma série de conceitos que produzem matéria, não importa quão desprovido de intuição, não importa quão mistificador para o não iniciado. Além disso, aquele materialismo é absoluto, pois nós não podemos permitir um pé divino na porta”. [17]

IV. O naturalismo metodológico no “cativeiro ideológico” do naturalismo filosófico

Pelas suas características de como chegar ao conhecimento, o naturalismo metodológico – epistemologia – não deveria ser influenciado pelo naturalismo filosófico –posicionamento ideológico. O fazer ciência como se o naturalismo filosófico fosse verdade leva o naturalismo metodológico acorrentado para o cativeiro ideológico do naturalismo filosófico. A história da ciência registra as muitas concepções do conhecimento científico e suas implicações para a ciência e a sociedade desde o início da Revolução Científica (1600) até o presente. A ideia passada para o público leigo é de que o ritmo acelerado de descobertas, invenções e insights inesperados sobre a natureza durante este período garantem as bases seguras da investigação científica.

Steven L. Goldman, professor da Universidade Lehigh, pensa que isso está longe de ser verdade, e destaca os seguintes casos:

  1. O método científico: Nos anos 1600s, o filósofo inglês Francis Bacon definiu o método científico na sua forma clássica: o uso do raciocínio indutivo para tirar conclusões de uma exaustiva coleção de fatos. Contudo, no fazer ciência normal, nenhum cientista é estritamente baconiano. Usar sempre a indução pode levar a lugar nenhum.
  2. Um debate “acalorado”: Por volta dos anos 1800s o debate sobre a questão da natureza do calor foi resolvido a favor da teoria que o calor é movimento e não uma substância expelida durante a combustão. O físico-matemático francês Joseph Fourier escreveu uma série de equações que descreviam exatamente como que o calor se comporta não importa o que ele ‘realmente’ seja. Fourier afirmou que isso não era uma questão científica de jeito nenhum.
  3. As mudanças paradigmáticas: A publicação do livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” de Thomas Kuhn em 1962 precipitou uma mudança radical nas atitudes em relação ao conhecimento científico, instigada pelo insight de Kuhn de que a ciência não é um empreendimento totalmente racional, e que suas teorias bem estabelecidas (os paradigmas) são destronados num processo revolucionário ilógico.
  4. A rebelião pós-moderna: O ataque pós-moderno à ciência como um modo privilegiado de investigação foi notícia na última década do século XX. A credibilidade do movimento definhou em 1996, quando uma publicação pós-moderna publicou inadvertidamente um artigo fraudulento do físico Alan Sokal, dando a entender que a teoria física era socialmente construída. Depois Sokal expôs publicamente o seu artigo como uma paródia.[18]

Embora nós ainda chamemos o sistema solar de astronomia copernicana, não existe efetivamente nenhuma semelhança entre a astronomia de hoje e a teoria dos céus de Copérnico de 1543.

Isso também é verdade de outras teorias, como a teoria atômica da matéria. Todas as teorias científicas estão num estado de revisão incessante, o que levanta a questão fundamental: o que é “realmente” a realidade? Ela é somente o resultado de causas materiais? Não existem causas inteligentes?

Conclusão parcial

A lição que a História da Ciência parece estar ensinando é que as teorias que hoje aceitamos como sendo verdadeiras provavelmente serão derrubadas assim como foram derrubadas as teorias que elas substituíram. Quais são os mínimos critérios que definem uma hipótese como científica? O design inteligente qualificaria? A teoria do design inteligente é uma teoria teleológica que afirma que certos eventos encontrados no universo são melhor explicados por causas inteligentes que são empiricamente detectadas. A incerteza sobre o verdadeiro status do conhecimento científico e da objetividade do empreendimento científico levou a uma ampla investida crítica da ciência na última parte do século XX por sociólogos, filósofos, e historiadores da ciência, muitos ligados ao movimento do pós-modernismo.

Paul Feyerabend, filósofo da ciência, reconheceu, como todos deveriam reconhecer, que a ciência afinal de contas funciona e é apenas um tipo de conhecimento. Não é o conhecimento absoluto que muitos cientistas e filósofos têm afirmado historicamente que é.

A ciência somente irá se libertar do cativeiro do naturalismo filosófico quando acolher novamente a teleologia como episteme científica e que o design é empiricamente detectado na natureza. Os cientistas devem tão-somente seguir as evidências aonde elas forem dar.

Conclusão Final

Ensinar somente ciência nas aulas de ciência (do website da AAAS).

Nota de Esclarecimento

As opiniões emitidas nesta palestra não refletem o ‘atual consenso acadêmico’ e nem têm o aval do Programa de Pós-graduação em História da Ciência da PUC-SP. Mas, apesar disso “Eppur si muove”!


Referências no original.


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