Sobre a Pseudonerdologia de Nossos Tempos

Qual seria a explicação do Design para o câncer?

Por acidente encontrei um texto recente do Átila sobre o Design Inteligente (de novo ele). Em Dezembro (2017) recuperei um texto antigo dele e rebati aqui, agora em um outro texto chamado “Como o Design Inteligente racionaliza o câncer?” ele questiona a inferência ao design.

Antes de ir ao assunto ele faz algumas considerações, por exemplo, usa argumento clássico em que “tudo se encaixa e faz sentido” somente na perspectiva evolutiva:

Se descobrimos uma nova bactéria ou um fóssil, a evolução gera hipóteses muito poderosas sobre o que poderemos encontrar. Poderosas porque descrevem toda a relação que todos os seres vivos (ou fósseis) devem manter para que continue fazendo sentido.

A relação que ele se refere é geralmente em como os seres vivos estão dispostos em uma “árvore” conforme semelhança global. Hoje cedo publiquei um texto que relembra que essa organização da biosfera é suportada pelo design, só não fiz questão de recordar que toda organização de sistemas complexos acaba formando uma “árvore”, como fiz no avassalador texto “As Árvores Informacionais da Vida”. Mas quem quiser tirar prova, pesquise sobre o organograma de sua empresa ou instituição, pela estrutura de qualquer sistema complexo ou como é a hierarquia de classes em orientação a objetos.

É até quase uma obrigação para o design de sistemas complexos seguir esse tipo de configuração. Provavelmente por essa razão Dawkins odeie o essencialismo, porque ele prevê essas mesmas coisas e foi utilizado por Carolus Linnaeus para classificar os seres biológicos sem recorrer a qualquer noção de ancestralidade comum. Aliás, é pelo esquecimento que a perspectiva evolutiva paira como “única explicação possível”. A verdade é que todo proponente do design sabe essas coisas e seus críticos desconhecem.

Por fim, até um leigo sobre o assunto pode atestar, com base nas declarações do tipo: “descoberta muda tudo o que sabemos sobre x” (substitua x pela descoberta do momento), a plasticidade da interpretação evolutiva sobre os fatos. Não existe nada de “hipóteses poderosas sobre o que poderemos encontrar”. Ela tem sim pontos de falseabilidade, o que torna a proposta científica, mas nada tão rígido quanto tentam fazer parecer.

Por isso são hipóteses muito fáceis de serem testadas e se provarem erradas, como a ancestralidade comum, o tipo de moléculas orgânicas que vão usar, como até expliquei neste vídeo. Já o design inteligente não ajuda em nada. Mesmo se estivesse certo, o que me informa sobre uma espécie assumir que alguém a desenhou? Se não souber explicar como algo funciona tenho a quem culpar?

Veja “mesmo que estivesse certo”, ou seja, a verdade não importa muito se não for “útil” pra gerar narrativas cativantes. Mas é certo que o mesmo tipo de tratamento que a perspectiva evolutiva proporciona, a inferência ao design também proporciona, sendo apenas inconcebível para alguém que ignore o raciocínio. As inferências sobre semelhança de estruturas e processos, a biologia funcional, se desenvolve independente de qualquer teoria histórica.

Então ele finalmente faz a pergunta:

E é nesse tipo de encruzilhada que entra a pergunta que está girando na minha cabeça. Como o Design Inteligente explica o câncer? E não me refiro ao fato de sermos imperfeitos e sofrermos com câncer. Afinal, o DI aceita que mutações podem acontecer. Me refiro à tudo que a medicina descobriu sobre a evolução de tumores nas últimas décadas.

E realmente é uma pergunta interessante, não pela perspectiva do Design, mas da perspectiva evolutiva, como veremos a seguir.

 ... para um grupo de células se tornar um tumor, precisam passar por várias rodadas de seleção natural e evolução. Afinal, nosso corpo tem uma série de mecanismos que checam o estado das nossas células e impedem um tumor de crescer. Nosso sistema imune reconhece e mata células com comportamento estranho (porque estão falhando ou infectadas por vírus e bactérias). Nossas células têm um controle que limita o número de vezes que podem se dividir. Entre outros. E tumores precisam superar todos esses controles para se tornarem malignos e causarem o câncer.

Átila aplica a ideia de seleção natural às células, e provavelmente ele não faz ideia do absurdo que resultará esse raciocínio. Em seguida ele fala sobre um sistema de qualidade que sozinho justificaria a inferência ao design: é superior a qualquer sistema de qualidade existente nas sociedades humanas. Por fim ele diz que os tumores precisam “superar” esses controles, como se fosse uma vantagem.

Então ele cita alguns passos para a célula saudável se tornar cancerígena:

 (i) precisam estimular o próprio crescimento; (ii) precisam ignorar sinais para pararem de se dividir; (iii) precisam ignorar sinais para se destruírem; (iv) precisam conseguir se multiplicar indefinidamente; (v) precisam recrutar a formação de vasos sanguíneos para ganharem nutrientes; (vi) conseguem invadir o tecido local onde surgem e se espalhar para novos locais (metástase); (vii) conseguem produzir energia por vias incomuns (como fermentação); (viii) escapam do sistema imune; (ix) têm um genoma instável e; (x) causam, evitam ou aproveitam inflamação.

A maioria dos passos são uma mesma coisa, as mutações que geram os tumores são bem específicas mesmo a ponto de alguns falarem sobre um “determinismo” nessas mutações, mas não seguem um padrão independente. Em suma, não são design.

Todos esses passos dependem de seleção natural e evolução para acontecer. O resultado final pode ser células tumorais com o genoma completamente reorganizado e capazes de viver indefinidamente. Um design bastante competente.

Temos “viver indefinidamente” como um “design bastante competente”. Vamos analisar: a maioria desses passos foi perda de alguma coisa. A morte celular programada (apoptose) é como um freio que foi perdido. A célula perde a capacidade de responder a sinais externos. Ou seja, é como estarmos em um carro sem freio e que não responde aos movimentos do volante e alguém dizer: veja que design compentente? É claro que isso não acaba bem.

A programação é design, esse “viver indefinidamente” é um acidente (neste caso) que gera estruturas aberrantes, mas o viver em si já existia, só se perdeu o “freio” e aí vem um ponto interessante sobre o sistema de morte programada: quando a morte, em geral, surgiu? Gradualmente por seleção natural? Nesse meio tempo tivemos zumbis na face da terra? Por que alguns animais não evoluem para perder os limites de tempo de vida? Na inferência ao design a programação é trivial, por que surgiria na evolução onde é uma desvantagem perene para o sucesso reprodutivo?

Agora, como um criacionista explica a complexidade irredutível de um tumor? Um designer inteligente e com intenção bolou um mieloma feito para matar? Ou um tumor não é complexo o suficiente para se qualificar como irredutível? E se posso assumir que um tumor é só o resultado de uma rodada infeliz do acaso, porque não posso aplicar o mesmo para o meu corpo todo? Qual a linha que separa uma criação benevolente de uma doença terminal?

Quem conhece o Design Inteligente sabe o quanto isso soa incoerente, principalmente sobre a Complexidade Irredutível. O aspecto fundamental da Complexidade Irredutível é de “passos não-selecionados”:

“Um caminho evolutivo irredutivelmente complexo é aquele que contém um ou mais passos não-selecionados (ou seja, uma ou mais mutações necessárias mas não-selecionadas). O grau de complexidade irredutível é o número de passos não-selecionados na via.”

Resposta aos críticos da Caixa-Preta de Darwin, de Michael Behe, PCID, Volume 1.1, Janeiro Fevereiro Março de 2002).

Isso significa que o processo de célula para tumor não configura complexidade irredutível. Ainda mais se a seleção natural estava atuando.

Sobre o tumor ser um “design melhor”, Jonathan Wells responde em O Câncer Prova a Inexistência de Design Inteligente?.


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