O movimento Terra Plana ganhou atenção nos últimos anos pelo crescimento e repercussão na internet. Muito antes disso, em 1999, Ruy Vieira editou “Inventando a Terra Plana”, de Jeffrey Burton Russell. O livro é a tentativa de resgatar a verdadeira história que envolve essa ideia:
O que está atrás de um erro tão crasso como o de afirmar que a ignorância e o obscurantismo medievais foram os responsáveis pelo modelo de uma Terra Plana! Nem Cristóvão Colombo, nem seus contemporâneos pensavam que a Terra era plana. Não obstante, essa curiosa ilusão permanece até hoje, firmemente estabelecida com a ajuda dos meios de comunicação, livros didáticos, professores nas escolas de todos os níveis, e até mesmo de historiadores sérios e honestos.
Ao invés de uma ideia que esteve entre os filósofos naturais, ela surge abruptamente no século XIX. Samuel Rowbotham (1816–1884), sob o pseudônimo de Parallax, escreveu panfletos que resultaram no livro “Astronomia Zetética – A Terra não é um globo” (1865). Não há qualquer tradição envolvida no assunto tal como costumam ser as correntes científicas e filosóficas ao longo da história.
Para se ter ideia, o sistema ptolomaico (geocentrico) começou a ser abalado pela revolução copernicana a partir de 1543, com a publicação de Das revoluções das esferas celestes, mas ambos os sistemas consideravam a terra um globo. Ptolomeu (90 – 168), no tratado astronômico e matemático Almagesto, descreveu o globo terrestre além de estabelecer os marcos de latitude, longitude e variações climáticas. Vários artefatos religiosos trazem a orbe representando o mundo antes de 1500 (globus cruciger), ou seja, não há uma história científica coerente para “terra plana”. Porém, se tomarmos as narrativas históricas suspeitas que se intensificaram no século XIX (1801-1900), temos boas razões para interpretar esse pensamento como produto de uma ação intencional.
A farta documentação indicada nas referências bibliográficas desta obra não deixa dúvidas a respeito do contexto em que se deu a “invenção” desse modelo que, gradativamente, a partir da controvérsia provocada pela ascensão do Darwinismo, acabou caracterizando a Religião como uma força sempre em oposição à Ciência.
Ruy Vieira
Os esforços deste tipo fazem parte de um movimento maior que reescrevia a história reforçando um conflito entre ciência e religião, especialmente o cristianismo. John William Draper e Andrew Dickson White, por exemplo, escreveram obras influentes onde a religião aparece como inimiga da ciência. Essas teses têm sido amplamente contestadas pelos historiadores da ciência hoje em dia, mas o teor se enraizou na sociedade e é porção sutil quase obrigatória da “divulgação científica”.
Os Vestígios do Tempo & a Reescrita Histórica
Um dos primeiros posts deste portal abordou a tentativa de associar a corrida espacial ao darwinismo, uma narrativa repetida em textos, podcasts e, no caso do post, pelo Brizola Neto na câmara de vereadores do Rio de Janeiro (Sputnik, darwinismo e a reescrita da história à la viés ideológico).
Há grande volume de conteúdo publicado nos últimos séculos que ajuda a evitar essa reescrita tendenciosa, especialmente após a prensa móvel de Gutenberg (1450). Entretanto, talvez a parte mais importante dos registros históricos nesse sentido seja de correspondências pessoais, que é onde vemos as especulações auxiliares, as porções “não publicáveis” e comentários acerca do pensamento na sociedade contemporânea aos seus autores. Aqui no portal já apresentamos projetos relacionados a Alfred Wallace e suas correspondências (co-autor da teoria darwiniana). E é nesse tipo de conteúdo que fica explícita a caricatura sobre o passado, porque a partir deles a história inventada parece cada vez mais incoerente e a verdade se destaca.
Há um espírito de falsificação e exagero pelo menos desde o Renascimento, e a religião é sempre o bode expiatório. Podemos dizer que parte do senso comum sobre a história recente é formado por caricaturas onde todo o sucesso da ciência é associado ao materialismo e a superação da metafísica tradicional, mas que não apresenta qualquer evidência concreta senão casos isolados interpretados subjetivamente. Um exemplo (Renascimento):
“Todas as disciplinas são agora ressuscitadas, as línguas estabelecidas […] Eu vejo que os ladrões de rua, os carrascos, os empregados do estábulo hoje em dia são mais eruditos do que os doutores e pregadores do meu tempo”. François Rabelais em Pantagruel (1532).
A informação é obviamente falsa. Nós podemos supor que na verdade a qualidade da educação caiu e a confiança de erudição provenha da própria ignorância em avaliar o estado de coisas.
A quem interessaria criar esse tipo de caricatura? Bom, temos parte da resposta em X-Club, Estratégia da Cunha e a Liberdade Acadêmica. Em todo caso, é interessante que os “defensores da ciência” trabalhem com reescrita histórica. Se não falam a verdade em coisas simples, imaginem o que podem fazer em questões complexas de tópicos em disputa?
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