O Argumento da Coerência: Design versus Unidade do Design

Nem mesmo o trabalho inteligente coletivo possui coerência sem a unidade do planejamento. Diferenças entre Santorini (Grécia) e Canberra (Austrália).

Eu apresento aqui um interessante argumento de coerência dos sistemas de design e a relação da coerência com o nível de planejamento. Será mais facilmente entendido por pessoas de áreas como biblioteconomia, computação, engenharia, entre outras.


Alguém que caminhe em uma cidade sem planejamento consegue perceber as limitações, até certo caos em suas ruas e na ocupação de espaços. Esse é o resultado comum do crescimento segundo necessidades imediatas, restrições naturais e desejos individuais através do tempo. Ser o produto de design não é suficiente para a coerência em um sistema complexo. Os problemas que um arquiteto encontra para reurbanização ou reformas de edifícios também são enfrentados por programadores, engenheiros e outros profissionais que trabalham com “reprojetos” ou adequações de projetos à novas necessidades.

Vários homens, com habilidade de inteligência, trabalhando independentemente em um mesmo sistema, não alcançam coerência sem um projeto. Mesmo um homem trabalhando sozinho em um sistema sem planejamento inicial não alcança coerência. Seja em construções, softwares ou qualquer sistema de design sem planejamento único, as expansões do “sistema” são, inescapavelmente, incoerentes. Processos cegos como a “seleção natural” são ainda inferiores a simples ausência de projeto humano para explicar a coerência dos sistemas biológicos.

Por quê?

A própria gênese dos sistemas, em seus princípios¹ e estruturas, impõe restrições em uma perspectiva e não oferece suporte (proficuidade) às novas necessidades por outra. Como diria Aristóteles sobre pequenas diferenças iniciais (no caso: sistemas de conhecimento): O menor desvio inicial da verdade multiplica-se ao infinito à medida que avança. Tal é o comportamento de sistemas complexos.

Os sistemas e construções possuem um fundamento (um cerne) que serve de suporte para todas as outras coisas. Se o sistema é complexo, então há sobre esse cerne outros níveis. Cada nível apresenta seus próprios princípios e estruturas, somados aos anteriores cumulativamente, até o nível “superficial” do sistema. Quanto mais níveis, estruturas e princípios, mais restrições, porque até as potencialidades restringem o sistema — a menos que um ajuste leve todos os elementos em consideração (unidade do planejamento).

Em todo projeto o objetivo é reduzir as restrições e ampliar as potencialidades (proficuidade). A medida que a complexidade do sistema aumenta, as restrições crescem exponencialmente. Como é impossível prever as novas demandas, esforços que retrabalham os níveis, muitas vezes se aprofundando até os fundamentos, são necessários para adequação das estruturas às novas expectativas.

Uma propriedade importante da coerência é a proficuidade: as possibilidades de aproveitamento de um elemento. Quanto mais genérico o cerne de um sistema, menores as restrições e, portanto, maior sua proficuidade. Quanto maior a coerência, mais universal o sistema. Um projeto de alta coerência é o qual todos os elementos são conhecidos e considerados para a melhor organização, sendo ajustados em unidade no sistema.

Um caso especial: sempre de primeira.

A vida tem um cerne: o código genético. Por sua universalidade² é chamado “acidente congelado”: estabelece toda forma de vida e não encontra paralelo nas criações humanas. Esse fenômeno se repete em cada nível da vida, que é “congelado” em suporte aos níveis superiores. É como se cada nível, desde o cerne, fosse estabelecido “de primeira” adequado a todas as demandas dos níveis superiores. O código padrão, as matrizes energéticas, as vias metabólicas assim como os famosos “planos corporais” são exemplos disso. O cerne e os níveis se apresentam como informação biológica de modo que a classificação e semelhança entre os sistemas pode ser inferido pelos níveis comuns (compartilhados).

Figura 1. Cerne-[Níveis]-Superfície

Seria surpreendente que um sistema fosse estabelecido com suporte para inúmeros subsistemas e níveis, e cada nível fosse também estabelecido com suporte para outros níveis diferentes desconhecidos. Não há nada semelhante em nossa experiência repetida e uniforme com sistemas, estruturas ou organizações. Todas as hipóteses fracassam miseravelmente para explicar essa qualidade ao passo que toda a nossa experiência indica exatamente que tipo de desenvolvimento alcança essa característica (coerência): a unidade do projeto.

Se você desconhece totalmente o planejamento de sistemas, provavelmente pode achar normal que acidentes se estabeleçam de forma apropriada para serem generalizados em vários níveis. Só não espere que especialistas que trabalhem com projetos de sistemas achem isso normal. O argumento já não trata de natureza versus design, mas design versus unidade do design, porque nem todo design possui coerência.

Argumento: Design versus Unidade do Design (Coerência)

Seria surpreendente que algum desenvolvimento conseguisse tal façanha sem correções com ajustes profundos. Mais surpreendente seria, a partir de um projeto sem conhecimento sobre os próximos níveis, alçar suporte para a vasta diversidade de sistemas que desempenham suas funções no ar, na água e na terra, sem prejuízo para os níveis inferiores. Mas seria “normal” caso todos os elementos fossem considerados na unidade do projeto.

Sabendo que o simples design não é suficiente para alcançar essa integridade, a melhor explicação é que os sistemas biológicos possuem a unidade do design desde o cerne³. Chamamos essa característica de coerência.


Notas Pertinentes

¹ Nota: Por princípios eu me refiro aos elementos que estão além das estruturas, como codificações, regras e padrões genéricos.

² Acidente congelado
Sob a perspectiva congelada do acidente, o código é universal entre as formas de vida moderna porque qualquer mudança na atribuição de códons seria altamente prejudicial.

O acidente congelado pode ser considerado a teoria padrão da evolução do código, porque não implica quaisquer interações específicas entre os aminoácidos e os códons ou anticódons cognatos, ou quaisquer propriedades particulares do código.

Os 49 anos subsequentes de estudos de código elucidaram características notáveis do código padrão, como alta robustez a erros, mas não conseguiram desenvolver uma explicação convincente para atribuições de códons. Em particular, a afinidade estereoquímica entre os aminoácidos e os códons ou anticódons cognatos não parece explicar a origem e a evolução do código.

Eugene V. Koonin. Frozen Accident Pushing 50: Stereochemistry, Expansion, and Chance in the Evolution of the Genetic Code. 2017.
(Acessar)

“… parece ser, ou estar muito próximo, de um ótimo global para a minimização de erros: o melhor de todos os códigos possíveis.”

³ SJ Freeland et al. Early fixation of an optimal genetic code. 1999.
(Acessar)

Restrições, gratuidade e coerência

É interessante que Monod, baseado em restrições para explicar a origem da vida, encontrou a proficuidade resultante da coerência e a descreveu como “gratuidade” (gratuité):

"É, e definitivamente (...), a gratuidade própria destes sistemas que, abrindo à evolução molecular um campo praticamente infinito de possibilidades e de experiências, lhe permitiu construir a imensa rede de interconexões cibernéticas que fazem de um organismo uma unidade funcional autômata, cujas possibilidades de aperfeiçoamento parecem transcender as leis da química ou até escapar-lhes."

Jacques Monod. O Acaso e a Necessidade. Obra citada, pp. 74 e 75.

Ele não só reconhece a gratuidade (uma “proficuidade“) do sistema como credita a ela uma “permissão” evolutiva, enquadrando a evolução em um cenário de coerência que não possui nada a ver com ela. Essa “proficuidade” é uma propriedade que aumenta com a coerência: quanto maior a gratuidade (proficuidade), maior a coerência.

Ancestralidade comum e plasticidade da vida

Os componentes orgânicos são generalizáveis e combinados em diversas maneiras, e tudo isso é apontado como evidência de evolução quando é exatamente o contrário: a proficuidade é sempre uma façanha de engenharia. A semelhança informacional é também o contrário, é característica de um projeto singular muito mais do que sistemas que evoluem estocasticamente.

Sobre a 'Antevidência'

Esse argumento acaba me fazendo considerar a chamada “antevidência”, que sempre evitei por me parecer frágil. Quando apresentei o argumento de coerência, um amigo (Ricardo M. L. S. Pereira) apontou como possível indício de antevidência, que seria “prever” as necessidades dos níveis superiores. Ainda assim creio que isso pareça mais uma ideia de um projeto incremental, sobre o futuro, enquanto eu penso que a coerência só é possível em um projeto completo (unidade do design).

Contexto

Esse argumento formaliza uma ideia comum entre os defensores do Design difícil de ser expresso. Um biólogo usou essa coerência como “complexidade irredutível” (em uma interpretação de “restrições”, é claro) contra a inferência ao design. Quando Átila creditou a robustez da E coli sobre o Linux à “complexidade irredutível” por restrições, ele revelou a magnitude da incompreensão de biólogos sobre a lógica e dinâmica de funcionamento de sistemas complexos. E por isso faz muito sentido acreditar em darwinismo e ancestralidade comum: alienado em uma gota e ignorando o oceano.

Coerência

Por coerência entendemos a relação, harmonia ou “coesão” entre elementos. É de certa forma uma unidade ou uniformidade entre esses elementos. A coerência é uma característica marcante dos padrões design em sistemas complexos e, apesar de apreendida da natureza, dificilmente é expressa em palavras por ser um traço extremamente sutil e difícil. Ela tem sido mensurada em certo aspecto como robustez (robustness) em relação a funcionalidades.

Citação (Aristóteles)

Sendo isto claro, devemos continuar a considerar as questões que permanecem. Primeiro, existe um corpo infinito, como pensava a maioria dos filósofos antigos, ou isso é uma impossibilidade? A decisão desta questão, de qualquer forma, não é sem importância, mas é muito importante para nossa busca pela verdade. É esse problema que praticamente sempre foi a fonte das diferenças daqueles que escreveram sobre a natureza como um todo. Então tem sido e assim deve ser; já que o menor desvio inicial da verdade é multiplicado mais de mil vezes. Admita, por exemplo, a existência de uma magnitude mínima, e você descobrirá que o mínimo que você introduziu, por menor que seja, faz com que as maiores verdades da matemática sejam alteradas. A razão é que um princípio é grande, mais no poder que na extensão; daí que o que era pequeno no início acaba por ser um gigante no final.

Aristóteles. Sobre os Céus. Livro I. Parte 5. (Acessar)

Estruturalismo e Funcionalismo

As duas versões majoritárias de evolução, estruturalismo (restrições) e funcionalismo (selecionismo), são tratadas neste argumento.

Grato ao Márcio Dantas Silva do Estúdio Ponto de Fuga por tratar a minha Figura 1.


Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*