A Biologia não se Reduz às Ciências Físicas

Acesse o original em: PARA ERNST MAYR, BIOLOGIA NÃO SE REDUZ ÀS CIÊNCIAS FÍSICAS
Claudio Angelo  em Bedford, Massachusetts (EUA)
Folha de São Paulo. Domingo, 04 de julho de 2004


A porta do elevador se abre e Ernst Mayr avança lenta e determinadamente em direção aos três jornalistas. “Entrevista? Claro. Mas só depois de apanhar a minha correspondência.” Logo, Mayr conduz seus interlocutores ao apartamento onde mora e trabalha sozinho. Nada mau para um centenário.

Pouca gente fora da área de ciências conhece o nome desse alemão, que completa cem anos amanhã. Mais familiar é o conceito de espécie biológica, que ele ajudou a definir na década de 1940. E a teoria da evolução de Darwin, da qual ele é o maior guardião. Conhecido por colegas na Universidade Harvard apenas como Ernst, Mayr é a última lenda viva da biologia. Ele foi um dos responsáveis pela chamada Moderna Síntese Evolucionista, movimento acadêmico que juntou a teoria darwinista da seleção natural com a genética e a ecologia, dando origem à teoria da evolução de hoje.

“Ele é o principal acadêmico darwinista do século 20”, diz o antropólogo David Pilbeam, de Harvard. Para o fisiologista Jared Diamond, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, Mayr “moldou a vida dos cientistas” do século passado. Legendário por sua determinação, pela defesa acirrada de suas idéias e por sua coragem -fez em 1928 o primeiro levantamento das aves da Nova Guiné, enfrentando malária e guerras entre tribos-, é também um observador privilegiado dos últimos 80 anos da história da biologia, que viram o darwinismo virar paradigma e o gene virar moda.

A importância de Mayr começa onde a habilidade de Charles Darwin para aparar as arestas da própria teoria terminaram. Darwin propôs a seleção natural como mecanismo evolutivo, mas morreu (em 1882) sem saber como a variação surgia nos organismos e era passada de geração a geração. A genética, fundada por Gregor Mendel, só seria plenamente estabelecida no começo do século passado. Os contemporâneos de Darwin, incluindo seu amigo Thomas Huxley, nunca compraram inteiramente suas idéias. “E, claro, os resultados de Mendel eram desconhecidos. O pensamento darwinista tinha saído de moda no primeiro quarto do século 20”, diz Pilbeam.

O jogo só viraria a partir de 1936, quando o genetictista russo Theodosius Dobzhansky -que viria para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e formaria pesquisadores como Crodowaldo Pavan e Antônio Brito da Cunha, na USP- propôs a unificação da genética com o darwinismo. Mais tarde, os zoólogos Ernst Mayr e Julian Huxley (neto de Thomas Huxley), os geneticistas de populações R.A. Fisher e J.B.S. Haldane e o paleontólogo George Gaylord Simpson publicariam trabalhos nos quais resolveriam várias questões em aberto na teoria. A definição de espécie de Mayr como conjunto de organismos que se cruzam entre si, mas que estão sexualmente isolados de grupos semelhantes, é adotada até hoje.

Autor de 24 livros, entre eles o clássico “Sistemática e a Origem das Espécies”, de 1942, Mayr acaba de concluir sua 25ª obra, sobre filosofia da biologia. “Meu objetivo é mostrar que a biologia é uma ciência autônoma, independente das ciências físicas. Eu acho, modéstia à parte, que esse vai ser um livro importante.”

Nesta entrevista, gravada durante uma hora e meia em sua casa, Ernst passa em revista a história de sua disciplina, critica sutilmente adversários intelectuais e comenta a resistência dos americanos em aceitar a evolução. E dá a receita da longevidade: acordar cedo, caminhar, não parar de trabalhar e… tomar iogurte todo dia.

Ouvimos falar que o sr. está trabalhando no 26º livro.
Não é o 26º, é o 25º [risos]. E eu não estou trabalhando mais nele, já li as provas finais. Não sei como o pessoal das editoras usa seu tempo, mas a pessoa da Cambridge University Press encarregada da publicação me disse que não sai antes de julho ou agosto.

E do que trata o livro?
O livro tenta mostrar -e eu diria que nem é necessário mostrar, mas muita gente discorda- que a biologia é uma ciência autônoma, que não deve ser misturada com a física. Essa é a minha mensagem. E, de fato, quando as pessoas me perguntam qual é realmente o meu campo, 50 ou 60 anos atrás eu teria dito sem hesitar: “Eu sou um ornitólogo”. Há 40 anos, teria dito que era um evolucionista. Um pouco mais tarde, eu ainda diria que era um evolucionista, mas diria também que era um historiador da biologia. E, nos últimos 20 anos, gosto de dizer que sou um filósofo da biologia. E -isso é provavelmente um fato do qual eu possa me gabar-, tenho diplomas honorários pelo meu trabalho em ornitologia em duas universidades, em evolução, em sistemática, em história da biologia e em filosofia da biologia.

É do ponto de vista filosófico que o sr. sente que a física limita a biologia?
Eu mostro que a biologia é uma ciência séria, legítima e honesta, como as ciências físicas, e todas as idéias que costumavam ser misturadas com a filosofia da biologia, como o vitalismo e a teleologia, que vieram para tentar desacreditar a biologia, todas essas coisas esquisitas estão fora. A biologia tem exatamente as mesmas bases das ciências físicas, compostas de leis naturais. As leis naturais se aplicam à biologia da mesma forma que se aplicam às ciências físicas. Mas as pessoas que comparam ambas, e os filósofos que põem a biologia junto com as ciências físicas, deixam de fora um monte de coisas. Você pode ver claramente que a biologia não é a mesma coisa que as ciências físicas. Dou apenas dois exemplos -um são as biopopulações. Biopopulação é algo que simplesmente não existe nas ciências físicas, e no entanto é a base de quase todos os conceitos em biologia. E a segunda coisa na qual a biologia difere por princípio das ciências físicas é que, nas ciências físicas, todas as teorias, sem exceção, são baseadas em leis naturais. Em biologia não há leis naturais que correspondam às das ciências físicas. Você pode perguntar como você pode ter teorias sem leis. Bem, em biologia, as teorias não se baseiam em leis, mas em conceitos -como o de seleção natural, em biologia evolutiva, ou conceitos como os de recursos ou de competição, em ecologia. Claro, em última instância, as leis físicas são a base de tudo, mas não diretamente da ecologia. E assim por diante. Eu acho, modéstia à parte, que esse vai ser um livro realmente importante, porque os filósofos ignoram essa questão. Ela é aborrecida, não se encaixa nos esquemas de pensamento deles, então eles a varrem para debaixo do tapete.

Então houve um período, após Newton e antes de Darwin, no qual a física foi uma ciência distinta da biologia?
Definitivamente. Temos um documento histórico maravilhoso que ilumina isso. Kant, depois de ter mostrado na “Crítica da Razão Pura” como tudo nas ciências físicas é baseado nas leis naturais, foi mostrar em 1790 que a biologia não é uma exceção, que ela é baseada inteiramente em leis naturais. Ele descreve isso em algum lugar nos primeiros capítulos da “Crítica do Juízo”. Ele tentou explicar a biologia em termos de generalizações, de leis naturais, e foi um desastre completo. Finalmente, ele disse: bem, precisamos pôr [a biologia] em outro lugar. Onde vai ser? Claro, na teleologia. Então ele escreveu “Crítica do Juízo”, no qual tentou fazer isso. E aquele volume, claro, foi um desastre. O número de livros escritos sobre “Crítica do Juízo” é simplesmente incrível. Todo mundo tentou demonstrar como Kant teve a intuição correta de fugir das leis naturais para a biologia e adotar em vez delas a teleologia. Bem, um dos capítulos do meu próximo livro se dedica a mostrar que isso não funciona. Não há nenhuma força obscura na natureza, como a teleologia ou a causa primeira de Aristóteles.

Então o sr. diria que a busca da biologia molecular por circunscrever tudo a ligações químicas e leis físicas é o mesmo erro que Kant cometeu?
Não. Deixe-me dar um passo atrás. Quando a biologia se originou? Bem, até o século 18, você tinha vários campos de atividade biológica, como anatomia e taxonomia, mas não tinha o campo da biologia. A palavra “biologia”, curiosamente, foi proposta três vezes, independentemente, por volta de 1800, por três autores -dois alemães e um francês. Minha proposição, que fiz em livros anteriores, foi que a biologia como um campo que você pode reconhecer, como algo diferente das ciências físicas, que você pode designar por uma única palavra, se desenvolveu e se tornou o que é hoje em um período relativamente curto. Foram cerca de 40 anos, [a partir] de 1828, quando Karl Ernst von Baer organizou a embriologia, e logo depois vieram os fundadores da citologia, [Theodor] Schwann e [Matthias Jakob] Schleiden, que causaram um grande furor quando publicaram seu trabalho na década de 1830, ao mostrar que animais e plantas são compostos dos mesmos elementos, as células. Então veio o grande período da fisiologia, com Claude Bernard, na França, e pessoas como Johannes [Peter] Müller e outros, na Alemanha. Esse foi um terceiro campo. Após algum tempo vieram [Charles] Darwin e [Alfred Russel] Wallace e a biologia evolutiva, e depois, em 1865-66, a genética. Então, essa série de ciências que começam com a embriologia e terminam com a genética são os alicerces da biologia. Você pergunta sobre a biologia molecular. Bem, deixe-me dar mais um passo ou dois atrás. Houve um período no começo do século passado durante o qual a síntese evolucionista teve lugar. Até aquela época, ou seja, o período entre 1859 e a síntese, nos anos 1940, houve uma grande reviravolta na biologia evolutiva, na qual foram propostas pelo menos quatro ou cinco grandes teorias básicas da evolução, como a das células germinativas. A síntese evolucionista, iniciada por [Theodosius] Dobzhansky e à qual se juntaram depois pessoas como eu, Julian Huxley e [George] Simpson, pôs um fim às elaborações teóricas no campo da evolução. Você tem [Oswald Theodore] Avery mostrando que os ácidos nucléicos, não as proteínas, são o material da evolução, e aí vieram James Watson e Francis Crick e todos os desenvolvimentos em biologia molecular, depois a genômica. Cada vez que uma dessas grandes revoluções acontecia, alguém esperava, por exemplo, que a síntese evolucionista fosse precisar ser reescrita. Mas o fato é que nenhuma dessas revoluções na estrutura da nova biologia, de Avery à genômica, nada disso realmente afetou o paradigma darwinista. Dito isso, desde Watson e Crick novos livros aparecem tentando provar que o darwinismo é inválido. Nenhum deles foi um sucesso. Agora, finalmente respondendo à sua pergunta, o gozado é que a biologia molecular tem um impacto notavelmente pequeno na teoria estrutural da biologia. Pelo menos é o que me parece hoje em dia. Claro, os biólogos moleculares podem apontar para o código genético e dizer que o código mostrou que a vida como a conhecemos só pode ter se originado uma vez, senão não teríamos o mesmo código para todos os organismos. E há outras contribuições da biologia molecular, mas nenhuma delas realmente tocou a teoria estrutural do paradigma darwinista, na minha opinião.

Por outro lado, ela é vista pelos biólogos moleculares e também pelo público como o momento que define a biologia do século 20. Eles reconstruíram toda a história da biologia como se apontasse para a biologia molecular e o Projeto Genoma Humano como seu clímax…
Se você voltar atrás, os biólogos moleculares se apropriam de tudo o que aconteceu antes como crédito deles. Mas, por outro lado, se você fosse um citologista, você poderia dizer que a demonstração de Schwann e Schleiden de que todos os organismos consistem em células é uma fundação tão importante da biologia como, digamos, a de que todos os ácidos nucléicos consistem em pares de bases. Eu diria que, do ponto de vista filosófico, os achados descritivos da biologia molecular não são mais importantes do que as conquistas na origem da biologia no período de 1828 a 1866. Essas descobertas são tão importantes quanto qualquer coisa em biologia molecular.

Alguns críticos da biologia molecular dizem que esse campo transformou a biologia numa espécie de atividade industrial e a desviou de uma ciência orientada por hipóteses. O sr. concorda que isso esteja acontecendo?
Em algum grau, sim. Olhe para a lista das pessoas que são eleitas em biologia para a Academia Nacional de Ciências [dos EUA]. Reclama-se nessas instituições que as pessoas que são eleitas ou que recebem prêmios são [só] biólogos moleculares. A biologia molecular parece ter uma espécie de glamour, que leva à eleição em sociedades, prêmios e coisas assim. E, de vez em quando, há um desenvolvimento em biologia de organismos que a torna muito atraente, pelo menos por um tempo. Por exemplo, quando se descobriu que moléculas são pistas muito boas para a filogenia, ou seja, para as relações de ancestralidade e parentesco entre organismos. De repente, multidões de biólogos moleculares começaram a escrever sobre filogenia de organismos, um ramo muito específico da biologia de organismos, e eles todos estavam muito orgulhosos em poder dizer que as baleias derivam de ungulados artiodáctilos. E se você realmente olhar para o que muitos biólogos moleculares estão fazendo hoje, o que eles estão realmente fazendo é estudar aspectos da biologia de organismos. Há vários autores cujos nomes eu não vou citar que costumam dizer: “Ernst Mayr se opõe à biologia molecular”. Eu nunca me opus à biologia molecular. Eu recebi prêmios em biologia molecular, das pessoas que sabiam que eu nunca realmente me opus. Eu fui palestrante em vários simpósios moleculares. E tudo o que eu disse foi que a biologia molecular não era o único tipo de biologia.

Eu me lembro de ter assistido a uma conferência, cinco ou seis anos atrás, na qual o pesquisador estava discutindo se duas populações eram espécies diferentes. Eles determinaram que eram duas espécies com base em análise genética. Não é perigoso se fiar tanto no DNA?
Depende. Em alguns casos, a diferença molecular não é indicativa de que são espécies distintas. Em alguns casos, é. Você tem de ter conhecimento de biologia de organismos para chegar à conclusão certa.

Há um conjunto de regras que determinam isso?
Não. Pode ser um único gene. Você tem duas escolas de evolucionistas, aqueles centrados nos genes e aqueles centrados nos organismos. Na década de 20 do século passado, quando J.B.S. Haldane e R.A. Fisher tiveram grande sucesso na genética molecular, havia uma grande crença em genes isolados, e você tinha a definição de evolução como a mudança nas freqüências de genes através das gerações, uma definição que nenhum geneticista que se preze daria hoje. Naquela época, havia uma polarização entre os chamados geneticistas de populações, que são centrados nos genes, e os naturalistas, que diziam que o indivíduo é que é selecionado e que o gene é apenas a forma por meio da qual o indivíduo é selecionado. Isso foi até os anos 1930. Então começou a se demonstrar, caso a caso, que tudo também dependia do contexto de outros genes. Portanto, um gene único não podia ser imediatamente selecionado. Um gene sempre ocorre no contexto de um genótipo, e no do fenótipo produzido por esse genótipo. Isso foi indicado por Dobzhansky em 1937, mas não realmente enfatizado. Aí vieram vários autores, alguns amigos de Dobzhansky, ressaltando que era a combinação de genes, portanto o indivíduo, o alvo da seleção natural. Depois, em 1970, saiu um artigo de Dick [Richard] Lewontin mostrando como não podia ser um só gene, e, em 1984, outro artigo de Lewontin com o filósofo Eliott Sober. Levou 60 anos, de 1924 a 1984, para essa visão centrada no gene ir embora. Mas ainda hoje autores como [Richard] Dawkins insistem nela. Eu tenho uma citação maravilhosa do Dawkins, na qual em uma única frase ele admite que o gene não é o alvo de seleção e depois ignora isso, dali em diante. Mas ela estará no meu novo livro [risos].

O sr. acha que ainda há espaço para trabalho de campo, naturalista, como aquele em que sr. iniciou sua carreira?
Ah, sim. Deixe-me voltar um pouco atrás: pense que 80% ou 90% dos pares de base não codificam nada. Esse problema incomoda a maioria dos biólogos moleculares, então eles o ignoram dizendo: “Nós vamos resolver isso”. A verdade é que eles ainda estão para fazê-lo. Como um bom darwinista, é parte da minha religião que nada acontece na evolução sem ter sido autorizado pela seleção natural. Mesmo assim, se nós estudarmos um processo evolutivo, encontramos todo tipo de coisa acontecendo que parece oposta ao conceito de seleção natural. Só que as pessoas não se dão conta de que a coisa mais importante na seleção natural é a eliminação de genes inferiores, não a seleção dos melhores. E essa eliminação é bem menos egoísta que a seleção dos melhores. Mas o que é “inferior”? Vários genes não são bons o suficiente para serem selecionados positivamente, mas também não são ruins o suficiente para serem eliminados. Olhe o pavão, por exemplo. Como pode a seleção natural selecionar uma monstruosidade como aquela cauda desajeitada, que o tornaria imediatamente vítima de um predador? A resposta é que o estudo da seleção natural é muito primitivo. Por exemplo, eu estou convencido de que as pessoas que estudam o começo da evolução animal, como no Pré-Cambriano e no Cambriano, como Steve [Jay] Gould -e eu acho que ele teve a intuição certa aí-, elas dizem que uma das grandes coisas sobre o Pré-Cambriano e o Cambriano é que todos esses tipos incríveis de animal foram produzidos e se extinguiram muito rápido. Como a seleção natural poderia ter produzido organismos tão complexos, tão improváveis? Eu acho que essa é a parte mais importante do trabalho de Gould: ele disse algo na linha “não vamos seguir Darwin, nem vamos pensar que a seleção natural escrutiniza tudo o tempo todo e sempre seleciona o melhor”. Nada disso, disse Gould. De geração a geração, sempre vários genótipos que não estão nem a meio caminho de ser algo bom passam para a geração seguinte, e isso explica muitos tipos de coisas que foram permitidas pela seleção natural, particularmente no período mais primitivo da existência dos animais. Acho que nessa área há um princípio que é muito clássico, mas ainda há uma enorme quantidade de coisas a serem pensadas. Eu vou escrever um artigo para a revista “Science” [publicado na edição de anteontem; veja www.sciencemag.org] por ocasião dos meus cem anos, no qual vou contar sobre minha carreira em poucas… bem, relativamente poucas palavras. Pretendo finalizar esse artigo dizendo que, quando olho para coisas como essas, posso pregar coragem ao jovem evolucionista, mas que o trabalho do evolucionista não está de forma alguma completo. Está cheio de questões não respondidas, mas, mais importante ainda, de questões não formuladas.

O sr. acha que as respostas a elas deverão vir da zoologia, da botânica, da paleontologia ou do laboratório?
De toda parte. Pegue a biologia do desenvolvimento, por exemplo. Nos anos 1930, quando as teorias de Spehmann (o princípio organizador) foram refutadas, os biólogos experimentais desistiram de biologia do desenvolvimento, e nada de impacto foi feito nessa área até a década de 1970, quando a “Evo-Devo” [estudo da evolução do desenvolvimento] apareceu, porque eles não tinham as ferramentas para resolver esses problemas. Isso é importante. Por exemplo, se você olhar para os escritos de Fisher e Haldane, sua série de artigos famosos de 1930 a 1932, eles dão uma explicação muito boa para as mudanças evolutivas, de como as coisas acontecem numa população sob a influência da seleção natural para melhorar ou manter a adaptação. No entanto, em toda a obra deles, você não vai encontrar uma só palavra sobre a origem da biodiversidade. Todo o campo das espécies, da especiação e da macroevolução está totalmente ausente de 1930 a 1932, e pessoas que olhavam de fora, como bioquímicos, diziam que aquilo era o fim da biologia evolutiva. Fisher e Haldane tinham solucionado tudo. Nada disso! Todo o campo da biodiversidade foi ignorado por eles, e só Dobzhansky, que era taxonomista de formação, mostrou que os melhores taxonomistas nas décadas de 1870 e 1880 já haviam solucionado o problema da origem de novas espécies, e foi só com ele que a biologia evolutiva deu o passo adiante conhecido como síntese evolucionista, quando Dobzhansky juntou biólogos evolutivos do tipo de Fisher e Haldane e evolucionistas de organismos como eu e ele, Huxley e Simpson. Há várias histórias de gente que sempre se refere a Fisher como a pessoa que refutou o saltacionismo de DeVries e Bates e chama isso de síntese. Isso não foi uma síntese. A síntese foi o que Dobzhansky iniciou, juntando a genética e a sistemática.

O sr. diz no seu último livro que nós não deveríamos mais chamar a evolução por seleção natural de teoria, mas sim de fato. Ainda assim, o que se vê neste país [EUA] é uma resistência grande à idéia. De quem é a culpa?
Da formação dos americanos. Veja, alguns psicólogos têm notado que, se você diz algo reiteradas vezes a crianças menores de seis anos, elas acabam acreditando. Alguns filósofos católicos parecem ter adotado esse princípio. Assim, bem, as pessoas ainda têm a crença de que cada palavra da Bíblia é a verdade final. Eu descobri uma coisa engraçada: quando o editor da “Science” me encomendou o artigo dos cem anos, eu perguntei a mim mesmo quando tinha me tornado um evolucionista. Faça essa pergunta a si mesmo -não é fácil respondê-la. E eu descobri: meu Deus, eu sempre fui um evolucionista, eu nasci um evolucionista. E os meus pais? Claro, ambos aceitavam a evolução, ou, como se diria nos EUA, eles “acreditavam” na evolução. Aí eu fui para a escola. E a evolução foi sempre algo dado como óbvio, tudo era explicado em termos de um mundo que evolui, ou, como Dobzhansky diria, “nada no mundo vivo faz sentido se não for à luz da evolução”. Eu fui para a universidade na Alemanha, e, claro, evolução era algo óbvio. Até neste país [EUA], em 1931, quando cheguei, os principais livros-texto de biologia não davam muito espaço ao criacionismo. Pessoas que não sofreram lavagem cerebral com idéias religiosas geralmente dão a evolução como óbvia, claro.

O sr. acha que a evolução vai triunfar um dia?
Deixe-me dizer uma coisa: Vocês acham que o eleitor americano vai votar nos democratas um dia? Até aqui neste lugar [um condomínio para pessoas idosas] eu às vezes encontro um republicano cabeça-dura e eles… não podem ser mudados. Um colega meu na Universidade da Califórnia em Riverside fez um experimento uma vez. Ele havia durante anos lecionado um curso sobre evolução e viu que sempre havia um certo número de criacionistas entre seus alunos. Um ano, antes da primeira aula, ele deu a seus alunos um questionário para responder, com questões muito simples, como “você acredita em Deus?”, ou “você acredita que cada palavra da Bíblia deve ser tomada pelo seu valor de face?” -e assim por diante. Ele obteve um bom panorama da estrutura das crenças de cada um dos seus alunos. No final do curso, durante o qual ele havia exposto todas as evidências de que a evolução é um fato, ele deu o mesmo questionário aos alunos, para ver quantos deles haviam sido afetados pelo curso e no que eles acreditavam então. Ficou chocado, porque os que haviam se mostrado religiosos no começo responderam: “Sim, eu ainda acredito em Deus; sim, eu acredito que o mundo foi criado em seis dias” -apesar de um semestre inteiro no qual havia sido demonstrado que tudo isso era bobagem.

Stephen Jay Gould diria que se trata de magistérios sem sobreposição…
Sim, há um pouquinho de verdade nisso. Vocês sabiam que Dobzhansky, que eu considero o maior evolucionista do século passado, se ajoelhava e rezava para Deus à noite, antes de dormir? David Lack, um dos dois ou três principais evolucionistas no Reino Unido, acreditou até o fim. Sua mulher me escreveu uma longa carta, dois meses antes da sua morte, falando do conforto que era para o seu marido, ao morrer, acreditar no cristianismo.

O sr. ainda acorda às seis para escrever cartas?
Não senhor. Estou muito decepcionado com o número de dias em que tenho de fazer um esforço enorme para sair da cama antes das oito. Eu escrevo cartas e manuscritos. Além do livro que já está no prelo, tenho dois manuscritos, que serão publicados em algum ponto deste ano ou do próximo, e tenho uma lista de manuscritos que ainda quero escrever. As pessoas perguntam: “Por que você se tortura assim?” Tortura? Não! Eu me divirto!


Acesse o original em: PARA ERNST MAYR, BIOLOGIA NÃO SE REDUZ ÀS CIÊNCIAS FÍSICAS
Claudio Angelo  em Bedford, Massachusetts (EUA)
Folha de São Paulo. Domingo, 04 de julho de 2004


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