Quantos Genes as Células Precisam? Talvez Quase Todos

As atividades dos genes em organismos complexos, incluindo humanos, podem estar profundamente interrelacionadas.

Por Veronique Greenwood

Eliminando três genes por vez os cientistas deduziram meticulosamente a rede de interações genéticas que mantém uma célula viva. Pesquisadores há muito tempo identificaram genes essenciais sem os quais as células de levedura não podem viver, mas um novo trabalho, que aparece hoje na Science, mostra que olhar apenas os essenciais dá uma imagem distorcida do que faz as células pulsarem: muitos genes que não são essenciais por si só tornam-se cruciais à medida que outros desaparecem¹. O resultado implica que o verdadeiro número mínimo de genes que a levedura – e talvez, por extensão, outros organismos complexos – precisam para sobreviver e prosperar pode ser surpreendentemente grande.

Nota do tradutor ¹: A diferença na relevância entre as diversas funcionalidades dos organismos configura fator categórico contra o neo-darwinismo.

Cerca de 20 anos atrás, Charles Boone e Brenda Andrews decidiram fazer algo um pouco louco. Esses biólogos especialistas em levedura, ambos professores da Universidade de Toronto, decidiram destruir ou prejudicar sistematicamente os genes da levedura, dois a dois, para ter uma ideia de como os genes funcionavam funcionalmente uns aos outros [engenharia reversa]. Apenas cerca de 1.000 dos 6.000 genes do genoma da levedura, ou cerca de 17%, são considerados essenciais para a vida: se um deles está faltando, o organismo morre². Mas parece que muitos outros genes, cuja ausência individual não era suficiente para implicar no fim do organismo, poderiam, se eliminados em conjunto, adoecer ou matar a levedura. É provável que esses genes fizessem o mesmo tipo de trabalho na célula, raciocinaram os biólogos, ou estivessem envolvidos no mesmo processo; perder os dois significava que a levedura não poderia mais compensar.

Nota do tradutor ²: Repare que houve imediatismo na análise, isso é, o gene era considerado essencial se sua ausência tivesse efeito negativo imediato no organismo.

Boone e Andrews perceberam que podiam usar essa ideia para descobrir o que vários genes estavam fazendo. Eles e seus colaboradores fizeram deliberadamente, primeiro gerando mais de 20 milhões de cepas de leveduras com ausência de dois genes – quase todas as combinações únicas de eliminação entre os 6.000 genes. Os pesquisadores, então, pontuaram o quão saudável eram cada uma das cepas mutantes (com dois genes eliminados) e investigaram como os genes ausentes poderiam estar relacionados. Os resultados permitiram aos pesquisadores esboçar um mapa da teia sombria de interações que fundamentam a vida. Dois anos atrás, eles relataram os detalhes do mapa e revelaram que já haviam permitido que os pesquisadores descobrissem papéis anteriormente desconhecidos para os genes.

Ao longo do caminho, no entanto, eles perceberam que um número surpreendente de genes no experimento não tinha interações óbvias com os outros. “Talvez, em alguns casos, deletar dois genes não seja suficiente”, disse Andrews, refletindo sobre seus pensamentos na época. Elena Kuzmin, uma estudante de pós-graduação no laboratório, que é agora um pós-doutorado na Universidade McGill, decidiu ir um passo além eliminando um terceiro gene.

No artigo publicado na Science, Kuzmin, Boone, Andrews e seus colaboradores da Universidade de Toronto, da Universidade de Minnesota e de outros países relatam que o esforço produziu um mapa mais profundo e detalhado do funcionamento interno da célula. Ao contrário dos experimentos com dupla eliminação, os pesquisadores não fizeram todas as combinações possíveis de mutações – existem cerca de 36 bilhões de maneiras diferentes de eliminar três genes da levedura. Em vez disso, eles analisaram os pares de genes que já haviam eliminado e classificaram suas interações de acordo com a “gravidade”*. Eles pegaram vários desses pares, cujos efeitos variaram desde fazer as células crescerem um pouco mais devagar até torná-las significativamente prejudicadas, e combinaram-nas uma a uma com eliminação de outros genes, gerando cerca de 200.000 cepas triplas mutantes. Eles monitoraram a rapidez com que as colônias de leveduras mutantes cresceram e, depois de observar quais mutantes estavam sofrendo, verificaram os bancos de dados para ver o que se pensava que os genes deficientes fizessem.

Nota do tradutor *: Severity no original. A gravidade da eliminação ou impacto no sistema.

Quando os cientistas construíram seu novo mapa, várias coisas ficaram claras. Por um lado, em cerca de dois terços dos triplos mutantes que mostraram uma interação genética adicional a eliminação do terceiro gene tendeu a intensificar os problemas que o dupla eliminação possuia. Pares de genes já podem mostrar alguma interação entre si, disse Andrews, “mas foi muito mais grave quando excluímos um terceiro gene”. Boone diz que estas são provavelmente situações em que a perda de um terceiro gene está causando um golpe crítico em um sistema já vacilante.

No entanto, um terço das interações eram completamente novas. E eles tendiam a envolver processos mais díspares. Em duplas eliminações, as conexões funcionais entre genes tendiam a ser estreitas: um gene envolvido no reparo do DNA geralmente tinha ligações com outros genes que também estão envolvidos no reparo do DNA, e genes que interagiam entre si geralmente interagiam com os mesmos genes. Com as triplas eliminações, no entanto, tarefas mais distantes começaram a se unir. A constelação de tarefas celulares conectadas mudou e se transformou sutilmente.

“Talvez o que estamos experimentando aqui”, disse Andrews, “sejam algumas conexões funcionais na célula que não pudemos ver antes”.

Um conjunto de novas conexões, por exemplo, foi entre genes envolvidos no transporte de proteínas e genes envolvidos no reparo do DNA. Superficialmente é difícil ver o que conectaria essas duas funções. E, de fato, os pesquisadores ainda não têm uma explicação mecanicista. Mas eles têm certeza de que existe uma. “Nossa reação imediata foi: ‘bem, isso é aleatório'”, disse Andrews. “Mas aprendemos no decorrer do projeto que não é aleatório. Nós simplesmente não entendemos como a célula está interrelacionada.”

Seu grupo acabou de começar a investigar essa ligação entre o transporte de proteínas e o reparo do DNA, mas, de acordo com Andrews, se você observar atentamente essas células de levedura, elas de fato mostram uma grande quantidade de danos no DNA. O mapa de conexões ajudou a chamar a atenção para isso: “Não haveria razão para procurar antes”, disse ela.

Os geneticistas de leveduras nunca ficaram com a impressão de que apenas os genes essenciais importavam. Mas o novo artigo reforça a ideia de que interpretações simplistas do que é importante no genoma da levedura provavelmente são falhas. A realidade é mais complicada, dizem Boone e Andrews. Eles sugerem que quando são consideradas as interações duplas e triplas, o número de genes que uma célula de levedura realmente não pode fazer sem saltos. Como observa o documento, o genoma mínimo necessário para as células de levedura evitarem um defeito substancial “pode quase se aproximar do conjunto completo de genes codificados no genoma”.

Esta figura mapeia as interações entre vários genes (representados como pontos) no genoma da levedura. Os genes com efeitos vinculados são conectados por linhas; genes com efeitos mais fortemente correlacionados estão mais próximos. A cor dos pontos corresponde aos processos biológicos e organelas nos quais os genes estão envolvidos.

De fato, esforços experimentais para criar um genoma mínimo para um microrganismo – identificar o menor número de genes que uma célula precisaria para sobreviver, como um passo para produzir genomas artificiais – mostraram ser surpreendentemente difícil remover genes e ainda ter um criatura próspera.

Em 2016, pesquisadores do Instituto J. Craig Venter (JCVI) relataram a criação de um genoma artificial para a bactéria Mycoplasma genitalium, na qual eles reduziram seus 525 genes para 473. Mas os efeitos negativos da remoção de genes aparentemente não essenciais foram de fato um sério problema, de acordo com Clyde A. Hutchison III, um bioquímico e professor de destaque no JCVI envolvidos no trabalho. “Esse foi o principal problema na escolha de um conjunto de genes para projetar um genoma mínimo”, disse ele.

Joel Bader, um biólogo de sistemas da Universidade Johns Hopkins, diz que o trabalho atual sugere uma conexão intrigante com uma ideia em genética humana – que uma ampla gama de genes pode estar influenciando sutilmente traços que normalmente não associamos a eles. “Quanto mais nos aproximamos, mais somos capazes de ver que perturbar um gene ou uma via tem efeitos que se propagam por todo o sistema”, disse ele. “Os efeitos ficam mais fracos, mas ainda podem ser medidos”.

A ignorante que ciência ainda pode ter sobre certos acontecimentos na levedura é ofuscada pela nossa ignorância do que está acontecendo em nossas próprias células. Parte do que torna possível um projeto como este na Universidade de Toronto é que a levedura foi fortemente estudada e seus genes intrinsecamente anotados por várias gerações de biólogos, em um nível ainda não atingido pelo genoma humano, que é comparativamente enorme, divagante e cheio de mistérios. Ainda assim, os pesquisadores dizem que esperam que, à medida que a tecnologia de edição de genes para as células humanas avance, esses tipos de experimentos possam ajudar a revelar mais sobre o funcionamento das células e como os genes dentro de um genoma se relacionam. “Eu acho que existem muitas regras básicas da biologia genômica que não descobrimos”, disse Andrews.

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Uma Confissão de Rejeição a Priori no Scienceblogs: A superioridade de design dos sistemas biológicos sobre os sistemas planejados coletivamente e a complexidade irredutível.

Original em: Quanta Magazine


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